Por Arthur Moura

Luis Buñuel, em O Anjo Exterminador (1962), constrói um dos retratos mais sofisticados, cruéis e simbólicos da decadência burguesa no cinema moderno. Mais que um simples exercício surrealista, o filme é uma alegoria implacável sobre o esgotamento histórico de uma classe que já não consegue mais produzir sentido para sua própria existência.

A narrativa é simples em sua superfície: um grupo da elite mexicana, após um jantar de gala, percebe que, por razões inexplicáveis, não consegue mais sair da sala de estar. A ausência de uma barreira física contrasta com a força de uma contenção simbólica e psicológica que os paralisa. O que se inicia como um incômodo social se converte, gradativamente, em colapso civilizatório.

A clausura como metáfora da alienação de classe

Sob a lente materialista, o espaço da sala de jantar adquire o significado de um território de reprodução da alienação de classe. Os personagens representam o topo da pirâmide social, acostumados a viver em bolhas de privilégio, completamente apartados da realidade objetiva das contradições sociais.

Aqui, Buñuel desloca o olhar do espectador: o que está em jogo não é a clausura física, mas a incapacidade estrutural da burguesia de romper com as próprias formas de sociabilidade que ela mesma instituiu. Eles não estão apenas presos na sala: estão presos em sua própria forma de ser, paralisados por uma lógica de dominação que já não lhes oferece saídas racionais.

Lukács, em História e Consciência de Classe (2010), nos lembra que uma das principais características da consciência reificada é sua incapacidade de apreender a totalidade social de modo dialético. A burguesia de Buñuel é exatamente isso: uma classe cindida, incapaz de reconhecer sua dependência objetiva em relação às classes exploradas, mergulhada numa inércia autodestrutiva, onde a manutenção da forma é mais importante do que a preservação da vida.

O esfacelamento dos códigos morais

À medida que o tempo passa e a clausura se prolonga, os códigos morais e as convenções sociais começam a se desintegrar. A etiqueta, os cumprimentos formais e a autoridade hierárquica dão lugar ao medo, à violência, ao egoísmo e, finalmente, ao caos.

Essa decomposição moral é uma demonstração daquilo que Marcuse (1973) chamou de “falsa estabilidade da sociedade administrada”: sob uma fina camada de civilidade, escondem-se os impulsos mais primitivos, que emergem quando a ordem material de reprodução social é interrompida.

Buñuel antecipa, com isso, a ideia de que não há civilização sem base material de sustentação, e que a moral burguesa só se sustenta enquanto o trabalho alheio (invisível, silencioso e permanentemente explorado) garante a sua existência cotidiana.

O invisível trabalho ausente

Um elemento muitas vezes negligenciado na leitura do filme é a ausência da classe trabalhadora. Logo no início, os empregados tentam ir embora, num movimento que parece intuir o desastre iminente. Uma vez afastados os trabalhadores, o colapso se torna inevitável.

Aqui, a alegoria é cristalina: a burguesia, isolada de sua base material, perde a capacidade de manter até mesmo as funções básicas de sobrevivência. Não há comida, não há água, não há limpeza. A elite, privada do trabalho alheio, se decompõe.

O que Buñuel dramatiza é um conceito fundamental da crítica marxista: a burguesia não pode existir sem explorar o trabalho de outros, e quando a classe explorada se ausenta – mesmo que simbolicamente – o castelo de cartas desmorona.

O caráter ideológico da impotência burguesa

O mais impressionante é a total ausência de soluções práticas por parte dos personagens. Ninguém tenta organizar uma fuga, quebrar as portas, improvisar uma saída. A passividade é absoluta. Trata-se de um exemplo vívido daquilo que Zizek (2011) descreve como “impotência ideológica”: uma paralisia subjetiva que impede a burguesia de agir, mesmo diante de sua própria destruição iminente.

A recusa em romper com o espaço é também uma recusa em romper com a própria forma de vida. Eles preferem definhar dentro da ordem que os oprime a pensar qualquer possibilidade de transformação.

Essa lógica é própria de toda classe dominante em seu ocaso histórico: antes a morte do que a renúncia ao poder.

O eterno retorno do ciclo da dominação

Quando finalmente conseguem sair, num movimento que parece mágico e arbitrário, os personagens voltam imediatamente ao ritual de submissão religiosa, entrando numa igreja. Buñuel, mais uma vez, expõe a ironia cruel: a saída da clausura não produz libertação, mas apenas uma nova forma de encarceramento ideológico.

O filme termina com o eco de uma nova prisão simbólica: a religião como último refúgio da impotência burguesa, o retorno à fé como tentativa de dar sentido a um mundo em ruínas. O ciclo da dominação social, simbólica e ideológica se reinicia.

Conclusão: uma fábula materialista sobre o fim de uma classe

O Anjo Exterminador é, em última instância, uma fábula materialista sobre o colapso interno da burguesia enquanto classe histórica. Buñuel, com ironia e precisão, retrata o esvaziamento moral, político e subjetivo de uma elite que já não consegue mais produzir saídas para as próprias contradições que criou.

A clausura, no filme, é a metáfora de uma clausura maior: a da sociabilidade capitalista em seu limite histórico.

O Anjo, que nunca aparece, é a própria lógica objetiva do capital: um agente invisível, mas implacável, que impede qualquer superação que não passe por uma ruptura radical com as bases materiais da dominação.

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